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O feminino de músico

Poucos tópicos da gramática sofreram maior pressão do novo papel da mulher na sociedade do que os nomes profissionais e sua variação de gênero. Em busca da igualdade, as mulheres estão requerendo nomenclatura compatível com a destinada aos homens, e a língua tem de dar-lhes recursos para tanto.
Minha dentista, mulher culta e muito interessada em línguas, além de profissional competente, me perguntou:
- Regina, o feminino de músico é musicista, não é?
- Hã!, hã! - balbuceei de boca aberta, tentando olhar seus olhos para o difícil diálogo naquela situação.
- Tenho uma nova cliente, muito educada e distinta, que toca na orquestra do Teatro e me disse, quando lhe perguntei a profissão para preencher a ficha: Sou músico. Achei estranho, músico é masculino, não é?, mas não tenho intimidade e não pude questionar.
Quando minha boca ficou livre da parafernália dentística, pensei com ela em voz alta. Musicista é formação de gênero por derivação (music- + -ist- + a). Talvez ela ache que o acréscimo de –ista desprestigie as profissionais: o homem é músico; a mulher, musicista.
A mesma repulsa acontece com as poetisas que, já há algum tempo, se recusam a ser chamadas desse modo, exigem e se autodenominam poetas: o poeta, a poeta, comum de dois gêneros.
Continuei: dizer Sou música também pode lhe soar estranho, porque música é a arte a que ela se dedica. Então optou pelo masculino.
Ela se calou, talvez considerando a hipótese. Não sei se concordou ou não, e a conversa se encerrou sobre a nova data do tratamento.
Creio que a minha hipótese é realmente forte, e a cliente da minha dentista, bastante engenhosa. Fez uma escolha em contradição com a regularidade da formação do feminino em nossa língua, mas inteligível (embora chocante) para os falantes.
Admito que a artista interprete a palavra musicista como se fosse uma segunda categoria de músico, pois musicista também é empregado no masculino: o ou a musicista, um substantivo comum de dois gêneros. Ora, se para o homem se diz tanto músico como musicista (que significam atuações diferentes) e para a mulher apenas musicista, então a competência da mulher seria menor e, assim, teria menor prestígio.
O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa propõe a equivalência de musicista com músico, mas também aponta para o primeiro o significado de autodidata em música, aquele que não é especializado nem artista. Aqui certamente reside o problema desse feminino formado por derivação.
Aliás, os nomes femininos formados por derivação ocupam o primeiro lugar em rejeição das mulheres. Os que conquistaram as falantes e são usados com orgulho pelas destinatárias, reais ou metafóricas, são os títulos de nobreza (princesa, duquesa, enfim), nomes das artes exclusivamente femininos (atriz, diva) e o inspirado neologismo tigresa, criado por Caetano Velloso na canção homônima, o qual se encontra registrado na mais recente edição do VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras).
Apesar de entender a objeção da artista ao feminino gramatical, defendo o uso da flexão regular para a palavra: o músico, masculino, e a música, feminino. O choque pela identidade sonora entre o nome da profissão e a arte cessa no contexto e passa com a familiaridade.
Situação idêntica se dá com o feminino de técnico, a técnica, que, apesar de homônimo do substantivo técnica (habilidade de fazer algo), é comumente usado na denominação de cargos públicos ocupados por mulheres: técnica judiciária, técnica legislativa, assessora técnica. Além deste, completamente integrados à linguagem, temos de substantivos de origem grega, com a mesma regra de flexão de gênero: o matemático / a matemática; o químico / a química; o físico / a física, o filósofo / a filósofa.
Por isso defendo o uso de o músico/a música, em vez da solução da cliente de minha dentista. Obedece à regra geral de formação de gênero em Português, tem inúmeros casos similares e, principalmente, não cria nova exceção às já numerosas regras de formação de gênero - pior: criaria uma exceção, sem ganho de expressividade equivalente ao da tigresa de Caetano Velloso.

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