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“Que país é esse?”

O título do rock da Legião Urbana nos traz mais uma interrogação, além da crítica política. Trata-se do emprego dos pronomes demonstrativos este ou esse em relação às pessoas do discurso.
Os dois pronomes demonstrativos têm usos bem distintos em alguns contextos, enquanto, em outros, se reduzem e se neutralizam sob as formas esse, essa, esses, essas, sem causar ao falante, com bom conhecimento de Português, o menor constrangimento - à exceção de ao Presidente Lula, levado à execração pública, pela famosa frase nunca antes na história desse país.
Mas, se a inspiração é a MPB, lembremos ainda Ari Barroso e seu famoso samba-exaltação Isto aqui o que é? ou Isso aqui o que é?, também conhecido sob o título não polêmico de Sandália de Prata. Não sei como o compositor teria escrito a letra mas, no Google, as duas formas co-ocorrem em incontáveis páginas: Caetano canta Isso; João Gilberto, Isto – para comparar só baianos. Enfim, pelo que se conta do rigor linguístico do músico mineiro, suponho que deverá ter registrado a letra como isto, ainda que a cantasse ou falasse isso, se despreocupado estivesse.
Ocorre nos exemplos um fenômeno fonético conhecido como assimilação, em que dois sons diferentes, no mesmo ambiente, se contaminam e se harmonizam para diminuir o esforço articulatório. Tal regra explica vários casos da evolução de palavras latinas como scriptum > scrittu> escrito (cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa) mas também acontece nas variedades faladas e escritas do Português moderno.
A razão do fenômeno é a economia de esforço articulatório: abranda-se o encontro s-t, que se reduz ao som único s. Tal licença é perfeitamente lícita na linguagem informal, mas é certo que o falante escolarizado, se perceber possibilidade de dúvida, deverá pronunciar, pausada e claramente, o encontro consonantal.
Em suma, todos os exemplos são casos de emprego de este ou isto, pois se incluem no contexto da primeira pessoa, de quem fala, do aqui-agora-eu/nós-meu/nosso. A neutralização com os pronomes esse ou isso, porém, não prejudica a compreensão. (O leitor teve alguma dúvida de que os versos e a fala do Presidente se referem ao Brasil?)
A diferenciação das duas formas é requerida em contextos formais e nas correspondências profissionais. As formas da primeira pessoa se empregam em relação a quem escreve; as de segunda, a quem lê. Confundi-las não é só um erro gramatical, mas um prejuízo à clareza do texto:
(1) Esta Diretoria não é competente para prestar as informações solicitadas. (minha/nossa Diretoria)
Esse é o demonstrativo da segunda pessoa, no contexto aí-há pouco-você/tu/vocês/vós-seu/teu/vosso:
(2) Apresento a esse órgão as informações solicitadas. (ao seu órgão)
Para encerrar a matéria, convido o leito a revisitar os versos do samba Alguém me Avisou, que cito no estudo Sou ferozmente contra pisar a grama. Neles, D. Ivone Lara usa o demonstrativo esse de uma forma que considero instigante: Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho/ Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho.
À primeira vista, poderia associá-lo aos três exemplos deste estudo, em que há neutralização dos demonstrativos. No entanto, proponho outra interpretação. Como se trata do diálogo entre o poeta, que veio de outra terra (), com humildade (pequenininho), e as pessoas que o convidaram, o chão em que ele deve pisar devagarinho, com humildade e respeito, é a terra dos que ele visita, da segunda pessoa – esse chão.
Entre as possibilidades que a língua oferece de usar este chão (o chão que agora piso) ou esse chão (a terra de vocês), o poeta preferiu a última.
Assim, os versos que se tornaram famosos seriam uma saudação aos anfitriões, em que o poeta se anula ante eles para reverenciar a terra e a cultura baianas. É também uma estratégia para, mais adiante, comunicar que precisará retornar à sua terra: Ó padrinho, não se zangue, / eu nasci no samba e não posso parar. Afago e astúcia do Português.

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