No simpático restaurante que frequentamos, lia as sugestões do cardápio, quando os sabores de muçarela com ene opções me trouxeram à lembrança a filha da professora primária que pedia, no balcão de frios do supermercado, 100g (eram tempos de parcimônia) de mozarela. O parentesco evidente da palavra italiana com a portuguesa, a sonoridade e sua grafia dicionarizada não me causavam a aversão da muçarela, que parece tudo menos aquela musse de queijo derretido – que delícia! - Rodízio para dois. Vou tomar só um suco; pizza com muçarela eu não como, brinquei. Em suma, tanto se pode escrever muçarela como mozarela, além, é claro, do italianismo “mozzarella”, entre aspas, perfeitamente adequado a um cardápio de pizzas. Veja, porém, que escrever muçarela mas, em seguida, grafar pizza é trazer mais desarmonia para o sistema de escrita, pois as duas palavras têm a mesma origem, escrevem-se com as mesmas consoantes dobradas e deveriam receber o mesmo tratamento em Português.
Poucos tópicos da gramática sofreram maior pressão do novo papel da mulher na sociedade do que os nomes profissionais e sua variação de gênero. Em busca da igualdade, as mulheres estão requerendo nomenclatura compatível com a destinada aos homens, e a língua tem de dar-lhes recursos para tanto.
Minha dentista, mulher culta e muito interessada em línguas, além de profissional competente, me perguntou:
- Regina, o feminino de músico é musicista, não é?
- Hã!, hã! - balbuceei de boca aberta, tentando olhar seus olhos para o difícil diálogo naquela situação.
- Tenho uma nova cliente, muito educada e distinta, que toca na orquestra do Teatro e me disse, quando lhe perguntei a profissão para preencher a ficha: Sou músico. Achei estranho, músico é masculino, não é?, mas não tenho intimidade e não pude questionar.
Quando minha boca ficou livre da parafernália dentística, pensei com ela em voz alta. Musicista é formação de gênero por derivação (music- + -ist- + a). Talvez ela ache que o acréscimo de –ista desprestigie as profissionais: o homem é músico; a mulher, musicista.
A mesma repulsa acontece com as poetisas que, já há algum tempo, se recusam a ser chamadas desse modo, exigem e se autodenominam poetas: o poeta, a poeta, comum de dois gêneros.
Continuei: dizer Sou música também pode lhe soar estranho, porque música é a arte a que ela se dedica. Então optou pelo masculino.
Ela se calou, talvez considerando a hipótese. Não sei se concordou ou não, e a conversa se encerrou sobre a nova data do tratamento.
Creio que a minha hipótese é realmente forte, e a cliente da minha dentista, bastante engenhosa. Fez uma escolha em contradição com a regularidade da formação do feminino em nossa língua, mas inteligível (embora chocante) para os falantes.
Admito que a artista interprete a palavra musicista como se fosse uma segunda categoria de músico, pois musicista também é empregado no masculino: o ou amusicista, um substantivo comum de dois gêneros. Ora, se para o homem se diz tanto músico como musicista (que significam atuações diferentes) e para a mulher apenas musicista, então a competência da mulher seria menor e, assim, teria menor prestígio.
O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa propõe a equivalência de musicista com músico, mas também aponta para o primeiro o significado de autodidata em música, aquele que não é especializado nem artista. Aqui certamente reside o problema desse feminino formado por derivação.
Aliás, os nomes femininos formados por derivação ocupam o primeiro lugar em rejeição das mulheres. Os que conquistaram as falantes e são usados com orgulho pelas destinatárias, reais ou metafóricas, são os títulos de nobreza (princesa, duquesa, enfim), nomes das artes exclusivamente femininos (atriz, diva) e o inspirado neologismo tigresa, criado por Caetano Velloso na canção homônima, o qual se encontra registrado na mais recente edição do VOLP (Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras).
Apesar de entender a objeção da artista ao feminino gramatical, defendo o uso da flexão regular para a palavra: o músico, masculino, e a música, feminino. O choque pela identidade sonora entre o nome da profissão e a arte cessa no contexto e passa com a familiaridade.
Situação idêntica se dá com o feminino de técnico, a técnica, que, apesar de homônimo do substantivo técnica (habilidade de fazer algo), é comumente usado na denominação de cargos públicos ocupados por mulheres: técnica judiciária, técnica legislativa, assessora técnica. Além deste, completamente integrados à linguagem, temos de substantivos de origem grega, com a mesma regra de flexão de gênero: o matemático / a matemática; o químico / a química; o físico / a física, o filósofo / a filósofa.
Por isso defendo o uso de o músico/a música, em vez da solução da cliente de minha dentista. Obedece à regra geral de formação de gênero em Português, tem inúmeros casos similares e, principalmente, não cria nova exceção às já numerosas regras de formação de gênero - pior: criaria uma exceção, sem ganho de expressividade equivalente ao da tigresa de Caetano Velloso.
O título do rock da Legião Urbana nos traz mais uma interrogação, além da crítica política. Trata-se do emprego dos pronomes demonstrativos este ou esse em relação às pessoas do discurso.
Os dois pronomes demonstrativos têm usos bem distintos em alguns contextos, enquanto, em outros, se reduzem e se neutralizam sob as formas esse, essa, esses, essas, sem causar ao falante, com bom conhecimento de Português, o menor constrangimento - à exceção de ao Presidente Lula, levado à execração pública, pela famosa frase nunca antes na história desse país.
Mas, se a inspiração é a MPB, lembremos ainda Ari Barroso e seu famoso samba-exaltação Isto aqui o que é? ou Isso aqui o que é?, também conhecido sob o título não polêmico de Sandália de Prata. Não sei como o compositor teria escrito a letra mas, no Google, as duas formas co-ocorrem em incontáveis páginas: Caetano canta Isso; João Gilberto, Isto – para comparar só baianos. Enfim, pelo que se conta do rigor linguístico do músico mineiro, suponho que deverá ter registrado a letra como isto, ainda que a cantasse ou falasse isso, se despreocupado estivesse.
Ocorre nos exemplos um fenômeno fonético conhecido como assimilação, em que dois sons diferentes, no mesmo ambiente, se contaminam e se harmonizam para diminuir o esforço articulatório. Tal regra explica vários casos da evolução de palavras latinas como scriptum > scrittu> escrito (cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa) mas também acontece nas variedades faladas e escritas do Português moderno.
A razão do fenômeno é a economia de esforço articulatório: abranda-se o encontro s-t, que se reduz ao som único s. Tal licença é perfeitamente lícita na linguagem informal, mas é certo que o falante escolarizado, se perceber possibilidade de dúvida, deverá pronunciar, pausada e claramente, o encontro consonantal.
Em suma, todos os exemplos são casos de emprego de este ou isto, pois se incluem no contexto da primeira pessoa, de quem fala, do aqui-agora-eu/nós-meu/nosso. A neutralização com os pronomes esse ou isso, porém, não prejudica a compreensão. (O leitor teve alguma dúvida de que os versos e a fala do Presidente se referem ao Brasil?)
A diferenciação das duas formas é requerida em contextos formais e nas correspondências profissionais. As formas da primeira pessoa se empregam em relação a quem escreve; as de segunda, a quem lê. Confundi-las não é só um erro gramatical, mas um prejuízo à clareza do texto:
(1) Esta Diretoria não é competente para prestar as informações solicitadas. (minha/nossa Diretoria) Esse é o demonstrativo da segunda pessoa, no contexto aí-há pouco-você/tu/vocês/vós-seu/teu/vosso:
(2) Apresento a esse órgão as informações solicitadas. (ao seu órgão)
Para encerrar a matéria, convido o leito a revisitar os versos do samba Alguém me Avisou, que cito no estudo Sou ferozmente contra pisar a grama. Neles, D. Ivone Lara usa o demonstrativo esse de uma forma que considero instigante: Eu vim de lá, eu vim de lá pequenininho/ Alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho.
À primeira vista, poderia associá-lo aos três exemplos deste estudo, em que há neutralização dos demonstrativos. No entanto, proponho outra interpretação. Como se trata do diálogo entre o poeta, que veio de outra terra (lá), com humildade (pequenininho), e as pessoas que o convidaram, o chão em que ele deve pisar devagarinho, com humildade e respeito, é a terra dos que ele visita, da segunda pessoa – esse chão.
Entre as possibilidades que a língua oferece de usar este chão (o chão que agora piso) ou esse chão (a terra de vocês), o poeta preferiu a última.
Assim, os versos que se tornaram famosos seriam uma saudação aos anfitriões, em que o poeta se anula ante eles para reverenciar a terra e a cultura baianas. É também uma estratégia para, mais adiante, comunicar que precisará retornar à sua terra: Ó padrinho, não se zangue, / eu nasci no samba e não posso parar. Afago e astúcia do Português.
Algumas palavras do Português (e das línguas em geral) têm referentes variáveis, que se esclarecem apenas no contexto extralinguístico, na realidade exterior. São os pronomes de primeira e de segunda pessoas como eu/ você – meu/seu; os demonstrativos este/esse/aquele; advérbios como agora/ontem/amanhã – aqui/aí/lá; verbos como ir/vir/voltar – chegar/partir – trazer/levar; substantivos como ida/volta – chegada/partida. Tais palavras remetem a pessoas, coisas e fatos diferentes em função de quem fala, do local de onde fala e do tempo em que fala: (1) - João, venha cá! (Quem chama usa vir.) &ndfp;- Já vou aí. (Quem ouve usa ir.) (2) Hoje é sábado, amanhã é domingo.(Vinicius de Moraes) (3) Esta sou eu. Aquela é Maria. Tais palavras não têm nome especial na Nomenclatura Gramatical Brasileira- NGB, e os autores usam conceitos diversos para caracterizá-las: índices, palavras indiciais ou indexicais, dêiticos (aquilo que se pode apontar com o dedo indicador). Usarei o termo dêiticos para este estudo dos vaivéns (ou vai-e-vens) da vida: passagem de ida, passagem de volta ou de vinda? Todas as formas são corretas, nos contextos adequados. Trocá-las é que requer cuidado. (4) Comprei a passagem de ida na Companhia X. (A pessoa que fala sairá do lugar onde está em direção a outro.) (5) A ida de Cristo a Jerusalém cumpriu a profecia. (Cristo saiu de um lugar em direção a Jerusalém.) SE à ida corresponder um retorno ao ponto de partida ou à terra natal, será usado, de maneira geral, o substantivo volta (cf. frases (9) e (10): (6) Comprei a passagem de volta na Companhia Y. (Quem fala volta para onde reside ou para o mesmo lugar de onde partiu.) Se alguém sai de um lugar em direção aonde está a pessoa que fala, usa-se: (7) Maria já comprou a passagem de vinda. Se alguém vai a algum lugar e vem em direção a lugares onde a pessoa que fala não está: (8) João comprou as passagens de ida e (de) volta na mesma empresa. Mas, se a pessoa que fala ou outra pessoa vai a algum lugar e retorna ao lugar onde está a pessoa que fala, poderá dizer: (9) Maria comprou as passagens de ida e (de) vinda ou volta na Companhia X. (10) Comprei as passagens de ida e (de) vinda ou volta pela internet. E ainda: (11-a) Foi mais barata a passagem de vinda (A pessoa que fala chegou ao primeiro destino, portanto se refere a essa passagem como vinda. Não pode dizer ida.) (11-b) do que a (de) volta. (Ao falar do retorno, usa volta. Não pode dizer vinda nem ida.)
Em suma: Ida: Saída de um lugar para outro, desde que o lugar a chegar não seja aquele onde se encontra a pessoa que fala; é, portanto, um dêitico referente à pessoa que fala Volta(1): Retorno; pressupõe uma viagem anterior, mas não depende do local em que a pessoa que fala está Volta(2): Retorno à terra natal; pressupõe uma viagem anterior mas não depende do local onde a pessoa que fala está Vinda(1): Saída de um lugar para outro onde a pessoa que fala está; é, portanto, um dêitico referente à pessoa que fala Vinda(2): Retorno, desde que para o lugar onde a pessoa que fala está; dêitico.
Por ter emprego mais geral e não depender de fatores extratextuais para sua compreensão, volta e passagem de volta são as formas mais empregadas para referir-se ao retorno de uma viagem. Basta conferir as páginas de agências de viagens. Ida e passagem de ida têm sentido bem amplo, pois se referem a partidas para todos os lugares onde a pessoa que fala não está, por isso se aproxima da generalidade do termo “volta”. Vinda, apesar de ser usado tanto para a saída quanto para o retorno, é termo bem específico, pois se refere exclusivamente a deslocamento em direção ao local onde está a pessoa que fala. Se tem menor poder de generalização, ganha, porém, em precisão e requer maior cuidado em seu uso.
Do que discutimos aqui, podemos concluir que volta é o contrário, o antônimo, de ida em todas as situações. Vinda só é antônimo de ida, se os dois substantivos forem usados em relação à pessoa que fala.
Finalizemos com Encontros e Despedidas, de Milton Nascimento e Fernando Brandt: chegar e partir só são dois lados da mesma viagem, se pensamos na humanidade; mas fazem grande diferença para cada pessoa real, em cada situação real - e no uso dos dêiticos.